sábado, 21 de novembro de 2009

As mentiras

 Outubro de 2009


“De Bonner para Homer”


Artigo de Laurindo Lalo Leal Filho


Perplexidade no ar. Um grupo de professores da USP está reunido em torno da mesa onde o apresentador de tevê William Bonner realiza a reunião de pauta matutina do Jornal Nacional, na quarta-feira, 23 de novembro. Alguns custam a acreditar no que vêem e ouvem. A escolha dos principais assuntos a serem transmitidos para milhões de pessoas em todo o Brasil, dali a algumas horas, é feita superficialmente, quase sem discussão.


Os professores estão lá a convite da Rede Globo para conhecer um pouco do funcionamento do Jornal Nacional e algumas das instalações da empresa no Rio de Janeiro. São nove, de diferentes faculdades e foram convidados por terem dado palestras num curso de telejornalismo promovido pela emissora juntamente com a Escola de Comunicações e Artes da USP. Chegaram ao Rio no meio da manhã e do Santos Dumont uma van os levou ao Jardim Botânico.


A conversa com o apresentador, que é também editor-chefe do jornal, começa um pouco antes da reunião de pauta, ainda de pé numa ante-sala bem suprida de doces, salgados, sucos e café. E sua primeira informação viria a se tornar referência para todas as conversas seguintes. Depois de um simpático bom-dia , Bonner informa sobre uma pesquisa realizada pela Globo que identificou o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional. Constatou-se que ele tem muita dificuldade para entender notícias complexas e pouca familiaridade com siglas como BNDES, por exemplo. Na redação, foi apelidado de Homer Simpson. Trata-se do simpático mas obtuso personagem dos Simpsons, uma das séries estadunidenses de maior sucesso na televisão em todo o mundo. Pai da família Simpson, Homer adora ficar no sofá, comendo rosquinhas e bebendo cerveja. É preguiçoso e tem o raciocínio lento.


O editor-chefe considera o obtuso pai dos Simpsons como o espectador padrão do Jornal Nacional. Ele é preguiçoso, burro e passa o tempo no sofá, comendo rosquinhas e bebendo cerveja. Na reunião matinal, é Bonner quem decide o que vai ou não para o ar (Pauta).


A explicação inicial seria mais do que necessária. Daí para a frente o nome mais citado pelo editor-chefe do Jornal Nacional é o do senhor Simpson. Essa o Homer não vai entender , diz Bonner, com convicção, antes de rifar uma reportagem que, segundo ele, o telespectador brasileiro médio não compreenderia.


Mal-estar entre alguns professores. Dada a linha condutora dos trabalhos atender ao Homer , passa-se à reunião para discutir a pauta do dia. Na cabeceira, o editor-chefe; nas laterais, alguns jornalistas responsáveis por determinadas editorias e pela produção do jornal; e na tela instalada numa das paredes, imagens das redações de Nova York, Brasília, São Paulo e Belo Horizonte, com os seus representantes. Outras cidades também suprem o JN de notícias (Pequim, Porto Alegre, Roma), mas elas não entram nessa conversa eletrônica. E, num círculo maior, ainda ao redor da mesa, os professores
convidados. É a teleconferência diária, acompanhada de perto pelos visitantes.


Todos recebem, por escrito, uma breve descrição dos temas oferecidos pelas praças (cidades onde se produzem reportagens para o jornal) que são analisados pelo editor-chefe. Esse resumo é transmitido logo cedo para o Rio e depois, na reunião, cada editor tenta explicar e defender as ofertas, mas eles não vão muito além do que está no papel. Ninguém contraria o chefe.


A primeira reportagem oferecida pela praça de Nova York trata da venda de óleo para calefação a baixo custo feita por uma empresa de petróleo da Venezuela para famílias pobres do estado de Massachusetts. O resumo da oferta jornalística informa que a empresa venezuelana, que tem 14 mil postos de gasolina nos Estados Unidos, separou 45 milhões de litros de combustível para serem vendidos em parcerias com ONGs locais a preços 40% mais baixos do que os praticados no mercado americano . Uma notícia de
impacto social e político.


O editor-chefe do Jornal Nacional apenas pergunta se os jornalistas têm a posição do governo dos Estados Unidos antes de, rapidamente, dizer que considera a notícia imprópria para o jornal. E segue em frente.


Na seqüência, entre uma imitação do presidente Lula e da fala de um argentino, passa a defender com grande empolgação uma matéria oferecida pela praça de Belo Horizonte. Em Contagem, um juiz estava determinando a soltura de presos por falta de condições carcerárias. A argumentação do editor-chefe é sobre o perigo de criminosos voltarem às ruas. Esse juiz é um louco, chega a dizer, indignado. Nenhuma palavra sobre os motivos que levaram o magistrado a tomar essa medida e, muito menos, sobre a situação dos presídios no Brasil. A defesa da matéria é em cima do medo, sentimento que se espalha pelo País e rende preciosos pontos de audiência.


Sobre a greve dos peritos do INSS, que completava um mês matéria oferecida por São Paulo , o comentário gira em torno dos prejuízos causados ao órgão. Quantos segurados já poderiam ter voltado ao trabalho e, sem perícia, continuam onerando o INSS , ouve-se. E sobre os grevistas? Nada.


De Brasília é oferecida uma reportagem sobre a importância do superávit fiscal para reduzir a dívida pública . Um dos visitantes, o professor Gilson Schwartz, observou como a argumentação da proponente obedecia aos cânones econômicos ortodoxos e ressaltou a falta de visões alternativas no noticiário global.


Encerrada a reunião segue-se um tour pelas áreas técnica e jornalística, com a inevitável parada em torno da bancada onde o editor-chefe senta-se diariamente ao lado da esposa para falar ao Brasil. A visita inclui a passagem diante da tela do computador em que os índices de audiência chegam em tempo real. Líder eterna, a Globo pela manhã é assediada pelo Chaves mexicano, transmitido pelo SBT. Pelo menos é o que dizem os números do Ibope.


E no almoço, antes da sobremesa, chega o espelho do Jornal Nacional daquela noite (no jargão, espelho é a previsão das reportagens a serem transmitidas, relacionadas pela ordem de entrada e com a respectiva duração). Nenhuma grande novidade. A matéria dos presos libertados pelo juiz de Contagem abriria o jornal. E o óleo barato do Chávez venezuelano foi para o limbo.


Diante de saborosas tortas e antes de seguirem para o Projac o centro de produções de novelas, seriados e programas de auditório da Globo em Jacarepaguá os professores continuam ouvindo inúmeras referências ao Homer. A mesa é comprida e em torno dela notam-se alguns olhares constrangidos.


* Sociólogo e jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP. Artigo publicado na Carta Capital, edição nº 371.